Havia um menino que queria apreender a lutar judô. Era um sonho, repetidamente falado ao pai que, descuidado, nunca viabilizava o desejo do menino. Um dia, triste dia aquele, num acidente de carro, o menino de sete anos ficou gravemente ferido e perdeu o braço direito. Foi terrível essa perda e trouxe uma depressão demorada. Além de tudo, jogou por terra o sonho antigo de lutar judô. Custou para sair da depressão. E quando saiu, voltou o sonho de lutar judo, para desespero da família. Com receio do estrago que uma nova decepção poderia fazer na vida daquele menino, o pai falou com o mestre de judo e pediu que aceitasse o menino na escolinha. O mestre concordou. E o menino começou as aulas de judô. Um mês depois, porém, o desânimo já havia substituído o sonho.
Durante aquele mês, todos os meninos haviam apreendido vários golpes e ele, apreendera apenas um único golpe, que repetia todos os dias, enfadonhamente. Mas o sonho teimava em voltar… e o menino persistiu. Até ao final do ano, quando enfim resolveu desistir e comunicou aos pais a decisão. O alívio da família durou pouco, pois durante as férias anunciaram um campeonato de judo na cidade e o mestre inscreveu o menino sem braço direito. Surpresos e apreensivos, os pais falaram com o mestre e o sábio pediu um voto de confiança: eu sei o que estou fazendo. Podem confiar em mim. Eu assumo a responsabilidade!
E assim foi. E assim começou o campeonato. Na primeira luta, o ginásio tremeu prevendo o pior: o adversário partiu para cima do menino sem braço direito, que se defendia conforme podia, acuado e cada vez mais golpeado. Até que, num momento de desespero, ele inventou de aplicar o único golpe que sabia e… ganhou a luta! Coincidência, sorte, acaso – comentavam na cidade. Chegou a segunda luta e a história se repetia. O menino cada mais acuado pelos golpes do adversário, defendia-se conforme podia… e quando não suportava mais a força da luta, quase no desespero, aplicou o seu único golpe… e venceu a luta.
E assim, de luta em luta, aquele menino sem braço direito, foi chegando na final do campeonato. Era o assunto na cidade. Os pais ficaram apavorados e mais uma vez falaram com o mestre, que os tranquilizou dizendo que assumia a responsabilidade. Mas o adversário da final era muito experiente. O ginásio lotado previa o pior. A luta começou e os pais fecharam os olhos temendo o desastre anunciado. O adversário, experiente de verdade, partiu para cima com tudo… e o menino sem braço direito acusou os golpes pesados. E, mais no sufoco do que na estratégia, resolveu aplicar seu único golpe… e ganhou a luta! O ginásio foi à loucura e a imprensa caiu em cima do mestre: como pode um menino sem braço direito vencer o campeonato de judô?! E o mestre respondeu sereno: tem dois segredos! O primeiro, é que esse golpe é muito importante na arte do judô… e esse menino, treinou todos os dias, durante o ano inteiro, esse mesmo golpe. Ele se tornou especialista nesse golpe e executa-o na perfeição. E o segundo segredo é que, a única forma do adversário se proteger desse golpe, é segurando no braço direita de quem o aplica!
A parábola do menino sem braço é o retrato falado da nossa história. Passamos a vida repetindo o mesmo golpe, os mesmos mecanismos da nossa Personalidade, porque deram certo lá na infância e continuamos executando religiosamente a mesma estratégia ao longo da vida, até nos tornarmos especialistas nisso. A Personalidade é o golpe de mestre que aprendemos e aperfeiçoamos. É a nossa especialidade de sobrevivência. Somos muito bons nisso, sem dúvida! Esse é o primeiro segredo.
O segundo nos lembra que a nossa fraqueza é a nossa força. Dizia Paulo Apóstolo: “quando sou fraco, então é que sou forte”. Ele demorou para entender isso e antes de chegar a essa descoberta, cansou de pedir a Deus que o livrasse do espinho na carne – e talvez não seja difícil descobrir qual era o espinho na carne de Paulo, se concordarmos que ele seria Tipo Um. Quando temos consciência do nosso ponto fraco, quando temos consciência que a nossa Personalidade nos cega e pode cavar o nosso fracasso… mas a aceitamos e acolhemos, ela passa a ser o sinal de alerta, a luz vermelha que acende no painel do carro, para dizer que a temperatura subiu e o o motor corre perigo. A consciência da nossa vulnerabilidade é o início imprescindível do nosso caminho de transformação. E a Personalidade que antes incomodava, passa agora a ser aliada no caminho de volta para a Essência. A cicatriz é o lugar por onde entra a luz – dizia o místico Rumi. Onde habitou o pecado, superabundou a graça, diz o Hino do anúncio da Páscoa na tradição Cristã.
Personalidade e Essência, cavalo e cavaleiro, em sintonia, no mesmo rumo. Mas tem um segredo aí no meio desse caminho. Lembramos a história da mosca que caiu no copo de leite e sentiu seu corpo se afogando… e, no desespero, bateu as asas com força, foi se criando aquela nata por cima do leite, a mosca subiu na película de nata e conseguiu escapar. No dia seguinte a mesma mosca caiu num copo com água e sentiu novamente o corpo afundando… mas agora, ela já sabia a solução! Bateu as asas com força… cansou e morreu afogada. A Personalidade é aquela estratégia que deu certo um dia na nossa infância… e que nós passamos a repetir em todas as situações. Às vezes dá certo…. e nós vamos assim reforçando a trilha mental que torna essa resposta cada vez mais mecânica e inconsciente. Mas afundamos também, muitas vezes, por usarmos a estratégia certa, na hora errada.
Por isso, se muitas vezes a Personalidade protege a Essência e se outras tantas vezes a submerge ou cega, urge descobrir o segredo, o terceiro ponto, o Ponto da Consciência, que nos permite, em cada momento concreto, olhar a Personalidade e a Essência e discernir qual é a energia mais favorável nessa situação concreta. O Ponto da Consciência é o lugar da auto-observação, um espaço neutro, onde nos tornamos espectadores de nosso teatro interior, conscientes das vozes que nos habitam e podemos, a partir dele, reger a orquestra, sem nada excluir, mas integrando e encontrando o momento certo para cada ator assumir a boca da cena. Inácio de Loyola, grande mestre da vida interior, chamava a isso Indiferença. Um estado de liberdade interior, de desapego, a partir de onde podemos fazer opções, sem condicionamentos, na liberdade. É um estado de não julgamento. A percepção livre de que há momentos em que a Personalidade ajuda e outros em que a Essência pode fluir livremente.
A Essência nos foi dada, é dom gratuito do Criador. Apenas acolhemos e devemos ser gratos por isso. A Personalidade foi construída por nós, mas de modo inconsciente, num jogo de reações defensivas. Mas este terceiro espaço, precisa ser construído por nós e só a consciência pode fazer essa empreitada. É o nous da Filosofia Grega, é aquele estado de observação onde nos tornamos testemunhas de nós mesmos. Gosto de chamá-lo de Estado Meditativo, ou Ponto da Meditação, pois a meditação é sem dúvida O Caminho que nos coloca nesta trilha de busca e encontro do equilíbrio.
Então, além do cavalo e do cavaleiro, procuramos o terceiro elemento. Os Templários, expressavam sabiamente e de forma emblemática esta compreensão, num símbolo que se formou mágico na sua tradição: um cavalo, com dois cavaleiros! O Cavalo é a Personalidade, o meio de transporte, a condição de estarmos e nos movermos neste chão que habitamos em nossa existência na Terra. Um dos cavaleiros é a Essência, a intuição sagrada que nos guia no rumo da fonte que tem sede de quem tem sede, como dizia Rumi. A Essência é pura, inocência pura, bondade natural, leveza, aquele estado de comunhão com o Uno onde nos sentimos verdadeiramente Um. É confiança, entrega, abandono total. A Essência não tem defesas. Quando experimentamos o estado de Essência, geralmente perdemos até a noção de tempo e de espaço. Saímos deste plano temporal e entramos na Eternidade. Os breves momentos em que que saboreamos a Essência, são amostras grátis da Eternidade. A Eternidade, o Sagrado, o Divino… está dentro do Tempo, porque Deus é presente, palpável, encontrável, experienciável. E é nesse ponto que Deus e o Ser Humano se encontram e são Um, quando a Personalidade e a Essência se abraçam e nesse ponto fora da curva podemos degustar a amostra grátis de Eternidade.
A Personalidade é a saudade da Essência. O muro que nos separa da Essência, mas que também nos une a ela. A janela que impede o vento… ou que se abre para o vento passar. Se a Essência nos dá asas, a Personalidade nos deu os pés para andarmos neste chão, sobre pedras e espinhos, como Ícaros de pés alados.
O segundo cavaleiro é a Consciência. Na alegoria dos Templários, é o cavaleiro de trás,
não é ele que guia o cavalo, mas ele tem uma visão ampla, que lhe permite ver o cavalo e o outro cavaleiro e falar com os dois, como o Conselheiro neutro que ao mesmo tempo
enxerga as estrelas que atraem e os buracos do chão onde pisa ou as pedras do caminho que trilha. Ele alerta a Essência para se manter realista, percebendo o caminho e desperta o olhar do cavalo para enxergar além das pedras de tropeço e fixar o coração no horizonte mais além. É de sonho e de pó o destino de um só, cavalo e cavaleiros, nessa tríade sagrada que supera todos os dualismos. Dizia Rumi que para além do certo e do errado, existe um campo sagrado. Porque é sagrado também esse terceiro ponto que a Lei do Três nos relembra. É o sagrado consciente, o sagrado experimentado, vivenciado, o que talvez possamos de verdade chamar espiritualidade, ou inteligência espiritual, ou talvez o que Gurdjieff chamava de Quarto Caminho.
O segredo Templário de andar pela vida, despertos, com os pés calejados pisando nas pedras do caminho e os olhos encantados e atraídos pelo horizonte! Se houver apenas o cavalo e o cavaleiro, ou o cavalo leva o cavaleiro para onde este não quer, por não ser a sua origem e seu destino… ou o cavaleiro briga com o cavalo e perde o controle sobre ele e assim fica sem meio de transporte para chegar mais longe. A Consciência é o diplomata que reconcilia Personalidade e Essência, conciliando a vontade de ir para um lugar e a capacidade de chegar lá. Não adianta andar por aí sem saber onde se quer chegar, como também não adianta saber para onde se quer ir, sem ter como lá chegar. Não há vento favorável para quem não sabe onde quer chegar e mais importante que a liberdade de voar é saber para onde ir. Mas também não adianta o vento soprar forte, se o barco não tiver as velas abertas. A Personalidade é a vela da jangada e o jangadeiro é a Consciência que enxerga o caminho, guiado pelas estrelas. A Personalidade é o GPS que nos guia na busca da Essência, na volta para casa, de onde vimos e para onde vamos, porque esse GPS registrou o itinerário que fizemos ao sair de casa, como o gato do português. Só ele sabe o caminho de volta e por isso pode ajudar-nos.
A Essência nos foi dada. A Personalidade foi construída por nos, mas de modo inconsciente. A Consciência, essa sim, é a construção responsável que a vida nos convida a fazer, reconciliando as outras duas dimensões e colocando-as a serviço da Missão de Vida, nesta Cruzada Sagrada em defesa dos lugares santos que nos habitam. Cuide bem da Personalidade, como cuida da Essência, porque as duas são um só – e só a Consciência permite ver isso!
Conta a lenda dos índios Cheroke, que o menino correu para casa assustado e disse que estava com muita raiva do coleguinha que tinha sido injusto com ele. E o velho avô cacique indígena, acolheu o neto, sentou-o nos seus joelhos e disse: é assim mesmo, meu querido. Nós sentimos raiva e injustiça, desejo de vingança, tristeza e mágoa… é assim mesmo. Porque dentro de nós tem dois lobos. Um lobo bom, que ama e quer bem, perdoa e abraça… e um lobo mau que anseia por vingança. E esses dois lobos vivem o tempo todo brigando dentro dentro de nós. E conta a lenda que o menino se empolgou com essa parte da história e perguntou animado: – é mesmo, vô?! E quem ganha essa briga?! E vem depois a sábia resposta do velho cacique: ganha aquele que você alimentar mais. Mas não termina aqui a sentença. A nossa cultura dualista cortou aqui a sabedoria da lenda indígena. Mas, na verdade, o velho índio teria continuado o ensinamento para o seu neto, dizendo: mas trate bem o lobo mau, para ele não se voltar contra você.
Personalidade e Essência são os dois lobos que nos habitam. Alimentar mais o lobo bom significa priorizar a Essência, cuidar daquilo que em nos é bom, saudável, sagrado. Mas trate bem a sua Personalidade, respeite-a, para que ela não se volte contra você. Porque o Ego sempre se vinga, quando é desprezado, ignorado ou reprimido.
Quando andei pelo Peru visitando as marcas da cultura Inca, passei três dias me perguntando como os invasores puderam destruir aquele povo, por que aquele império não resistiu. E entre muitas explicações e razões para costurar respostas, um elemento simbólico me chamou a atenção: os Incas não conheciam o cavalo e, quando viram aqueles estranhos chegando, homens montados nos cavalos, acreditaram que esses seres estranhos eram deuses, por acharem que o homem e o cavalo eram uma coisa só. Boa simbologia para a nossa conversa. Quando cavaleiro e cavalo se tornam um só, acontece a deificação do ser humano, nos tornamos aquilo que somos de verdade. Aquela garrafa que atravessa os mares, faz com que uma mensagem importante chegue bem longe e se perpetue e até salve vidas. Assim está a Personalidade para a Essência, levando uma mensagem divina através de mares bravios. No dia em que você se ajoelhar perante a sua Personalidade e lhe prestar homenagem e assim honrar também os seus antepassados e as circunstâncias que criaram condições para a sua Personalidade emergir… nesse dia você dará à sua Personalidade a carta de alforria e a promoverá à livre cidadania e, numa aliança de amor, poderá pedi-la em casamento, como na lenda do Kiriku e da Feiticeira Marabá. Ou como o profeta Oseias casou com a Prostituta, ou como o paralítico curado por Jesus na beira da piscina saiu carregando a sua cama – a cama que antes o carregava e limitava, agora é carregada por ele, porque a tomada de consciência fez perceber que a cama pode ser útil. Ser levado pelo cavalo selvagem desenfreado… ou cavalgar o cavalo domesticado que me leva ao horizonte que me atrai.
Há que se fazer algo com aquilo que foi feito de nós. Há que se tornar responsável, por aquilo que nos determina. Há que aceitar como a nós mesmos esse Outro que nos visita – dizia Freud. Somos responsáveis por aquilo que a Vida fez de nós. Responsável é ser capaz de dar uma resposta criativa, trocando o porque pelo para que.
O segundo cavaleiro cuida do cavalo e cuida do outro cavaleiro. A sua posição privilegiada lhe permite enxergar o caminho de forma mais distanciada e falar no ouvido do primeiro cavaleiro. E assim, este segundo cavaleiro da Consciência, pode dirigir o cavalo e o cavaleiro para horizontes mais plenos. Enquanto o primeiro cavaleiro fica ocupado em manter o controle do cavalo, o segundo fica livre para enxergar o caminho e o horizonte e discernir os rumos nas encruzilhadas da vida. Cavaleiros do Templo, do templo sagrado que nos foi arrebatado e precisa ser libertado dos infiéis, para nele nos reencontramos com o Divino que nos habita.
Tem muitos cavalos selvagens andando por aí à toa, sem chegar a lugar nenhum. E tem muito cavaleiro perdido brigando com o cavalo e tem também muito cavalo levando cavaleiros por abismos perigosos ou vales ociosos.
Procure o seu cavalo e cuide bem dele. Domestique e amanse, como Santa Marta fez com o seu dragão. Não se deixe iludir pela conversa de S. Jorge no ledo engano de querer matar seus dragões. Coloque rédeas no seu cavalo e afague o rosto dele, como faz o cavaleiro antes da corrida. Respeite-o. Não maltrate nem se iluda que consegue viver sem ele. Seja a Consciência que conversa com o cavalo e o cavaleiro. Sem o cavalo, você não irá muito longe, mas o cavalo sozinho pode se perder e botar a perder o cavaleiro. O valor do cavalo está no que ele permite ou proporciona ao cavaleiro. Quem ganha o prémio na corrida hípica é sempre o conjunto harmonizado. Nenhum cavalo ganha corrida sem cavaleiro e nenhum cavaleiro ganha corrida sem cavalo. Mas precisa ter liga, cavalo e cavaleiro. Se não tiver sintonia, o cavalo derruba o cavaleiro. Qual é o melhor cavalo? Depende! Para marchas longas tem um e para corridas rápidas tem outro. Para o trabalho agrícola já seria outro e nas touradas já é outra raça. O cavalo está para o cavaleiro assim como a Personalidade está para a Essência: a serviço, em sintonia, num conjunto harmonioso. Tem cavalo que dá coice e tem cavalo que dança na frente do touro, na tourada à antiga portuguesa. A diferença está no treino e no cavalo adequado.
Mas cavalo impetuoso fica parado misteriosamente na frente de uma criança deitada no chão…
Porque a Personalidade se rende perante a beleza e a grandeza simples da Essência, como nas cenas fortes da não violência ativa de Gandhi.
O cavalo alado é o paradigma da Personalidade e da Essência em harmonia. Ou um anjo com os pés no chão, como Ícaro com asas nos tornozelos.
É a Consciência que sabe escolher o cavalo e conversar com ele e tirar dele o melhor. Consciência é saber enxergar as potencialidades e habilidades do cavalo e sintonizar tudo isso com o sonho do cavaleiro, que lhe vem da Essência. E quando cavalo e cavaleiro sintonizam, tem vencedor no hipódromo da vida. Mas o texto sagrado nos lembra que o homem não vence pela força do seu cavalo e adverte também ai do homem que coloca a sua confiança nos cavalos.
Feliz o ser Humano que domestica o seu cavalo e guiado pelo apelo que da Essência lhe vem, passeia conscientemente pelos caminhos da vida, atento às pedras do caminho e saboreando as belezas da paisagem, encantado pela luz do horizonte que o chama mais além.
Feliz o Ser Humano que apreendeu a ser Um no Três e Três no Um, integrando o cavalo e os dois cavaleiros.
Feliz o Ser Humano que ao longo da vida cultiva e aprende a cuidar do segundo cavaleiro, a Consciência, testemunha, observador atento.
De Deus nós vimos, como Essência. A infância nos deu o cavalo selvagem da Personalidade. A Consciência é o cavaleiro que nos guiará de volta ao Uno.
Autor: Pe. Domingos Cunha, CSH