Passou o resto dos dias de sua vida admirando sua própria imagem refletida no lago, sem comer, sem beber, definhando-se dia após dia até morrer.
Cada vez mais nos deparamos com pessoas que vivem em constante busca de um corpo perfeito, fama, riqueza e poder. Essas são palavras que fazem parte do cotidiano de algumas pessoas que ultrapassam qualquer limite moral, ético, físico e psicológico, em busca de algo que preencha seu vazio interior e suas frustrações.
Essa atitude é comumente encontrada em pessoas que não conseguem viver sem uma platéia que as cerquem de elogios, presentes e reforcem a sua “virilidade”. São competitivas, insensíveis, arrogantes e derrubam quem estiver à sua frente. Esse é o retrato do traço de caráter chamado narcisista, que vem a cada dia ocupando mais e mais espaços na mídia e na sociedade em geral.
Desde há muito tempo, o ser humano vem buscando entender o seu comportamento frente às outras pessoas. Do mito de Narciso às infindáveis pesquisas no campo da psicologia, passando pelos estudos psicanalíticos de Freud, vários cientistas trouxeram inúmeras contribuições para o estudo desse tão discutido traço de caráter.
Para uma melhor compreensão dessa dinâmica de caráter, entendamos um pouco sobre o mito de Narciso.
Eco era uma linda ninfa, amante dos bosques e das montanhas, companheira favorita de Diana em suas caçadas. No entanto, tinha um grande defeito: falava demais e costumava sempre dar a última palavra em qualquer conversa da qual participava. Certa vez, a deusa Hera desconfiou que seu marido Zeus a estava traindo com as ninfas e saiu à sua procura. Caminhando pelos bosques deparou-se com Eco que, assustada com a presença de Hera passou a entretê-la em uma conversa sem fim. Percebendo a artimanha de Eco, Hera a condenou a não mais poder falar uma só palavra por iniciativa própria, a não ser como resposta quando questionada.
Passeando pelo bosque, Eco avistou Narciso, um jovem de extrema beleza, filho do deus-rio Cephisus e da ninfa Liríope. Narciso preferia viver só porque ainda não tinha encontrado nenhuma pessoa bela que fosse merecedora do seu amor. Eco começou a seguí-lo e, sentindo-se apaixonada, quis dizer a ele o quanto o queria, mas isso não era possível porque era preciso esperar que Narciso falasse primeiro para então, ela lhe responder. Distraída pelos seus pensamentos, Eco não percebeu que o jovem se aproximava dela e tentou se esconder rapidamente. Narciso ouviu o barulho e caminhou em sua direção perguntando:
– Há alguém aí? E ouviu uma resposta: Ai!
Olhando à sua volta e não vendo ninguém, queria saber quem estava se escondendo dele, dona daquela voz tão bonita. E disse: Vem!, ouvindo como responsta: Vem!
– Por que foges de mim? Perguntou ele.
– Foges de mim? Respondeu Eco.
– Eu não fujo! Disse Narciso. E completou: Vem, vamos nos juntar!
Nos Juntar!, respondeu Eco que não mais se contendo de felicidade saiu correndo em direção a Narciso. Assustado, Narciso gritou: Afasta-te! Prefiro morrer do que te deixar me possuir! Imediatamente ouviu como resposta: Me possuir!
Narciso fugiu, e a ninfa, voltou a se esconder no meio dos bosques, cheia de vergonha. Daí em diante, Eco passou a viver nas cavernas e montanhas, sem se alimentar nem ter qualquer tipo de contato com outros seres. Seu corpo foi se definhando até desaparecer completamente, restando-lhe apenas o eco de sua voz, que continua a responder a todos que a chamem, conservando o costume de dizer sempre a última palavra.
Do alto do Olimpo, Nêmesis descontente com a atitude de Narciso, condenou-o a se apaixonar por sua própria imagem. Certo dia, cansado após um penoso dia de caça, Narciso debruçou-se sobre uma fonte para tomar água. Foi quando viu refletido na água, o rosto de um belo jovem. Pensou ele: “Com certeza é algum espírito das águas que habita esta fonte”. Imediatamente apaixonado pela imagem e logo baixou-se para beijá-la, mas quando tocou as mãos na água, a imagem desapareceu.
Narciso, então, perguntou: Porque me desprezas, bela criatura? E por que foges ao meu contato? Meu rosto não deve causar-te repulsa, pois as ninfas me amam, e tu mesmo não me olhas com indiferença. Quando sorrio, também tu sorris, e responde com acenos aos meus acenos. Mas quando estendo os braços, fazes o mesmo para então sumires ao meu contato.
Suas lágrimas caíram na água, turvando a imagem. E, ao vê-la partir, Narciso exclamou: Fica, peço-te, fica! Se não posso tocar-te, deixe-me pelo menos admirar-te. E assim, passou o resto dos dias de sua vida admirando sua própria imagem refletida no lago, sem comer, sem beber, definhando-se dia após dia até morrer. As ninfas choraram seu triste destino e no lugar onde ele faleceu, encontraram apenas uma bela flor, que em sua memória recebeu o nome de Narciso.
Autor: VOLPI, José Henrique. Poder, fama e ferida narcísica: uma compreensão caractero-energético do narcisista. Curitiba: Centro Reichiano, 2003. Disponível em: www.centroreichiano.com.br/artigos.htm.