O eneagrama parece ter sido apresentado no Ocidente, em sua forma atual, por Gurdjieff. O conhecimento do funcionamento do eneagrama era um dos mais importantes e constantemente referido no sistema gurdjeffiano. Porém, parece haver evidências de que tal símbolo já fazia parte do conjunto de conhecimentos que antigas ordens sufis utilizavam, ordens estas com as quais Gurdjieff entrou em contato durante seu aprendizado (Godo 1995 -2).
Gurdjieff dizia que o ensinamento que jaz sob o eneagrama é “completamente autônomo, independente de outros caminhos“, dando a impressão de permear a humanidade em vários lugares e épocas.
A Lei de Três relaciona-se diretamente com a criação.
A Lei do três
O eneagrama é um símbolo cuja representação gráfica é de uma esfera dividida em nove partes. Essa figura encerra relações matemáticas simples e surpreendentes. Quando dividimos a unidade por 3, obtemos a sucessão infinita de 3, em uma dízima periódica, assim:
1/3 = 0.3333…
Se a isso somarmos mais uma terça parte obteremos:
1/3 + 1/3 = 0.6666…
Se repetirmos:
1/3 + 1/3 + 1/3 = 1
que também poderia ser expresso por 0.9999…
Esses 3 números – 3, 6 e 9 – dão origem ao triângulo do eneagrama que representaria a “Lei de Três”, uma das Leis básicas que fazem partem do sistema de Gurdjieff.
A Lei de Três relaciona-se diretamente com a criação. Determina que todos os fenômenos podem ser compreendidos em termos de tríades geradoras que se expressaram em muitas tradições como o Pai-Filho-Espírito Santo; Brama-Shiva-Vishnu, na Índia; Keter-Chokma-Binah, na Cabala; Isis-Osiris-Horus, no Egito, etc..
Essa Lei diz que a geração de todos os fenômenos pode ser explicada pela interação de 3 forças: uma de maior intensidade, chamada de ativa que atua sobre a força de menor intensidade do conjunto que recebe o nome de passiva através da modulação e controle de uma força neutralizadora. A força passiva não é estática, ao contrário ela é atuante, mas possui uma intensidade menor que as outras duas. Gurdjieff (1991) refere-se à essas três forças usando os nomes de Santa Afirmação, Santa Negação e Santa Conciliação. Citando sua própria definição: “Todo novo surgimento provém de surgimentos anteriores através do ‘jarnel-miatznel’, quer dizer, através de uma fusão, cujo processo se realiza assim: o que está acima se une com o que está abaixo, com a finalidade de realizar por esta união, o que é mediano, o qual se converte, por sua vez em superior para o inferior seguinte, e no inferior para o superior precedente.” (Gurdjieff 1991).
Nada pode acontecer a não ser que essas três forças estejam presentes. Sem a neutralizadora, a ativa e a passiva ficam em inútil oposição e nada de novo pode surgir. Em nosso estado atual de consciência somos praticamente cegos à força neutralizadora, pois estamos sempre presos a dualidades. Para que sejamos capazes de perceber mais do que essa dualidade é necessário um nível de percepção diferente da realidade.
Costuma-se afirmar que as forças representadas pelos pontos 3, 6 e 9 são derivadas diretamente do Mundo de Uma Lei, ou seja, a própria emanação do Criador. Elas contêm a mesma substância que dará origem ao Mundo de Três Leis. Assim, podemos afirmar que o triângulo dentro do eneagrama simboliza a ação do próprio Absoluto na realidade. O ponto 9 conteria a Força Ativa e representaria a ordem “Seja!”, a ordem primeira que dá origem aos seres; o ponto 3 representaria a harmonização do novo padrão estabelecido e atuaria como a Força Neutralizadora, enquanto que o ponto 6 (Força Passiva) “abriria um espaço” na realidade para que o novo evento pudesse vir à existência. Por isso, se diz que a Lei de Três está diretamente relacionada com a criação e é parte da natureza intrínseca do Raio de Criação em si. Porém, quando saímos da análise dos fenômenos que envolvem a criação e passamos a fazer um estudo mais psicológico ou de atividades cotidianas, podemos observar que as qualidades das Forças Passiva, Ativa e Neutralizadora nem sempre se mantém nos mesmos pontos. O ponto 9 por exemplo, pode conter o Força Passiva, e assim por diante.
A Lei das Oitavas
Continuando, se agora dividirmos a unidade por 7 e somarmos outros sétimos sucessivamente, obteremos:
1/7 = 142857142857…
2/7 = 285714285714…
3/7 = 428571428571…
4/7 = 571428571428…
5/7 = 714285714285…
6/7 = 857142857142…
Os números 3, 6 e 9 não aparecem nessas dízimas e a seqüência dos números sempre é a mesma: 142857. Essa seqüência dá origem a figura que acompanha o triângulo e representa a “Lei das Oitavas”.
Poderemos nos perguntar porque usar o número sete? Ao que parece, este número estaria associado à própria capacidade cerebral de discriminar e classificar os fenômenos. Vemos a escala de sete notas musicais, as sete cores do arco-íris, os sete dias da semana, etc.. (Godo 1995 – 2).
A Lei das Oitavas mostra que todo o fenômeno evolui ao longo do tempo numa série de passos seqüenciais e que isso determina uma hierarquização. Essa seqüência no entanto, não é uniforme; existem períodos de aceleração e desaceleração, ou ainda, a energia que impulsiona o surgimento do fenômeno torna-se alternadamente mais forte e mais fraca. Existe portanto, pontos cruciais nessa seqüência onde energias adicionais devem ser colocadas para que não ocorram desvios que podem acarretar a não concretização do fenômeno. A esses pontos dá-se o nome de “choques”. Quando uma energia adicional não é colocada no ponto de choque ocorre um desvio na evolução do fenômeno que o distancia da sua concretização.
As Leis que determinam a seqüência dos eventos que compõem um fenômeno qualquer, já eram conhecidas em civilizações antigas e parece ter sido a origem da escala de sete tons da música. Logo, a lei das oitavas pode ser expressa como se segue:
Os choques correspondem aos semitons que representam o momento, no desenrolar do fenômeno, em que uma energia externa deve ser colocada. Se o primeiro choque for dado, a oitava se desenvolve naturalmente sem desvios até o Si. Nesse momento um novo impulso deve ser colocado para que a oitava alcance o próximo Dó.
Gurdjieff dizia que qualquer evento dentro da Lei das Oitavas, vai evoluir, desde que a energia para os choques seja introduzida, de Dó para Ré, de Ré para Mi, para Fá, Sol, Lá, Si, Dó, sendo que este último Dó, por sua vez tem as mesmas características do Dó inicial, só que ele vai estar situado em uma dimensão energética ou numa qualidade acima.
A seqüência de dó a dó é chamada de “oitava humana” ou “oitava evolutiva” porque a partir de um nível de energia inicial, o processo segue através de um conjunto de passos, até atingir um resultado que reflete o ato inicial num outro nível ou qualidade ou energia. Os momentos de choque receberam a energia necessária de tal forma que o processo chega ao Si final. Esse processo ocorre quando temos uma intenção inicial e chegamos ao final obtendo aquilo que havíamos proposto a nós mesmos no início. Nesse caso, a qualidade do produto final costuma ser apenas suficiente para os padrões cotidianos e encontra-se dentro dos valores normais em termos de eficiência, bom gosto, criatividade, produtividade, etc. dependendo do evento que analisarmos.
Mas, devemos notar que a Lei das Oitavas afirma que o nível de energia que ocorre em um patamar é suficiente para que o Dó evolua para Ré, e para que o Ré evolua para Mi, mas a partir desse ponto, não existe mais energia suficiente intrínseca para que o processo siga em frente na sua exata dimensão. Se a energia adicional não for colocada, o processo tende a parar, o que é muito comum. Se for colocada energia mas esta for insuficiente, o processo pode seguir em frente mas em um nível mais baixo: de Fá passa para Sol, Sol para Lá, Lá para Si e aqui novamente temos uma outra parada. A partir desse ponto o processo decai de novo caso, seja colocada uma energia baixa, e chega a um outro patamar. Esse tipo de evolução de processos costuma ser chamado de “oitava natural”, pois acontece naturalmente onde existe pouca energia para manter o processo. É também chamada de “oitava do homem adormecido”. Aqui o produto será sempre degenerado ou inferior em relação à idéia inicial. O esquema seria assim:
No entanto, ainda existe uma terceira possibilidade, onde no choque entre Mi e Fá existe um suprimento de energia extra, que é capaz de elevar a oitava para um nível acima em termos de qualidade. Nesse caso, damos o nome à essa oitava de “oitava do Trabalho” ou do “homem consciente”. A qualidade final do processo é notável e situa-se bastante acima do padrão comum. O esquema seria este:
Através dos diagramas fica claro que existem várias possibilidades, onde, por exemplo, o choque entre Mi e Fá pode acontecer e o choque entre Si e Dó não, o que acarreta uma gama muita grande de variações. No entanto, o elemento básico e mais importante que atua como energia nos momentos de choque é a atenção. Muitas vezes será a qualidade da atenção que definirá os processos. É necessário estar atento à evolução do processo e principalmente, estar atento nos momentos chaves, onde o choque se faz presente. E além disso, é necessário ter atenção suficiente para perceber qual a qualidade do choque. Muitas vezes a energia necessária está no próprio ambiente à nossa volta e para percebe-la é necessário desenvolver uma certa sensibilidade à realidade, tentando perceber as nuances e sutilezas. Às vezes é necessário uma energia de ordem física, às vezes, emocional ou intelectual. É necessário treinar essa capacidade de discriminação sutil para que a energia produzida no momento seja realmente útil.
Subir na oitava em ambos os choques não é muito comum. Esse aumento de qualidade e a geração de um produto especial, só é possível para as pessoas muito bem treinadas. É muito raro, mas é possível. Todas essas alternativas existem. E isso pode ser aplicado para qualquer evento. Podemos analisar a negociação de um contrato usando esse modelo; estabelecer a planta de um escritório ou de um prédio. Podemos definir com antecipação se queremos um resultado aceitável, razoável ou se queremos um resultado excepcional. E então, devemos definir precisamente quais são os pontos em que deveremos colocar energia para atingir as metas que desejamos. Não adianta colocar energia antes ou depois do momento preciso porque isso não modificará substancialmente o resultado.
Sabemos que a energia necessária entre os pontos Mi e Fá é a metade da necessária entre os pontos Si e Dó. Gurdjieff, em seu livro ‘Relatos de Belzebu a seu Neto’, chama ao primeiro choque de “mdnel-inn-mecânico-coincidente” e ao segundo de “mdnel-inn-voluntariamente-realizado”. A diferença entre eles parece residir no fato de que a energia para que o primeiro choque aconteça, tem uma maior chance de ser provida pelo próprio ambiente, mas a energia para o segundo choque deve necessariamente vir da pessoa envolvida com o processo.
Estudo Vivencial: Lei das oitavas e Eneagrama
“A estrutura do Universo é tal que nenhum processo, causal ou intencional, poderá chegar ao seu termo exceto em condições ambientais planejadas”, afirmava Gurdjieff. Essa proposição pode ser observada em todos os eventos. Isso acontece porque na vida cotidiana as coisas sempre acontecem por si mesmas e carregam os indivíduos na direção que o acaso determina. “Condições ambientais planejadas” significam ou implicam em atenção para com os atos e suas consequências e para com os sinais que a realidade constantemente nos dá, para que sejamos capazes de escapar da lei do acidente.
Por isso, o estudo da Lei das Oitavas e do eneagrama deve ser sempre experiencial. Implica em uma atitude de maior responsabilidade frente aos eventos que desencadeamos. Esse estudo nos conduz a perceber os momentos em que devemos estar mais atentos para desencadearmos os choques corretamente, de forma a garantir que o desenrolar do fenômeno aconteça a contento. E ainda, ajuda-nos a cumprir os objetivos que muitas vezes iniciam-se com um forte impulso, mas que aos poucos esmorecem, ou se desviam. Por exemplo, começamos empolgados com a idéia de trabalharmos sobre nós mesmos e terminamos perdidos em ilusões intelectuais, arrogância, etc.. Muito pouco acaba por sobrar do objetivo inicial até que, em momentos determinados, percebemos o quanto nos afastamos dele e tentamos começar tudo de novo.
A necessidade pelo estudo destas Leis era sempre bastante enfatizado na Escola Gurdjieffiana. A compreensão e a utilização consciente de suas premissas eram, em si mesmas, princípios que poderiam libertar o ser dos processos mecânicos da máquina. Segundo Gurdjieff (1991) o estudo das Leis Cósmicas terminaria por gerar em nós a “propriedade divina” da “imparcialidade”. Para compreender melhor esse termo, sugerimos a leitura do tópico “O Eu-Observador de Gurdjieff“.
Se observarmos o desenho do eneagrama com atenção perceberemos que o segundo choque está, aparentemente no local errado, pois ele deveria estar entre Si e Dó e no entanto, ele aparece entre Sol e Lá.
Na verdade, depois que uma oitava se iniciou, se o primeiro choque for corretamente dado, nesse ponto (número 3) começará o desenvolvimento de uma segunda oitava paralela à primeira, onde o ponto 6 da primeira oitava (choque) corresponderia ao ponto 3 da segunda oitava, o ponto de choque (Ouspensky 1993) – veja figura ao lado. Sempre que iniciamos um evento muitas outras oitavas paralelas se desenvolvem, levando-nos, se tudo der certo, a uma espiral em direção a objetivos cada vez mais amplos. Por exemplo, o estudo de um livro muito difícil mas muito importante, pode gerar uma segunda oitava paralela, por exemplo, da formação de um grupo que se dispõe a estudá-lo. Desse estudo outras oitavas podem se desenvolver com as propostas de trabalhos práticos que o grupo pode executar com a finalidade de experienciar as idéias do livro. Uma outra oitava pode surgir se o grupo decidir fazer um trabalho que leve as idéias do livro para fora do contexto do grupo, por exemplo, através de uma peça teatral. Uma outra oitava surgiria então envolvendo as pessoas que entrariam em contato com essa peça, culminando em outra oitava da formação de um novo grupo de estudos, por exemplo, e assim por diante.
Até agora falamos apenas do percurso “externo” do eneagrama que vai do ponto 1 seqüencialmente até o ponto 9 (ou de Dó a Dó). Existe porém um segundo caminho que é o caminho “interno” cuja seqüência é a interna, ou seja a dos números que formam a dízima periódica 142857. Esse caminho indica a direção e o fluxo de influências dentro da própria estrutura.
O caminho externo, portanto, é fundamentado pela Lei das Oitavas, enquanto que o interno o é, pela Lei de Três. Analisando cada ponto em separado, pelo caminho interno, notamos que ele se liga à outros 2 pontos. Cada um desses pontos irá interagir com o ponto de análise, de forma a complementar o evento, seja mandando ou recebendo energia. O ponto central é o local onde as informações são recebidas, elaboradas e enviadas para o próximo ponto, gerando uma energia adicional que dará condições para a continuação do processo.
Se o ponto central é o ponto onde devemos interferir, isso significa que ele representa o momento presente. E neste instante, temos a possibilidade de estarmos interligados com o passado e o futuro ao mesmo tempo. Assim, dizemos que cada evento ocorre simultaneamente no passado-presente-futuro. Devemos compreender que o passado já se foi e que o futuro ainda não existe. Assim sendo, o único momento que realmente conta é o momento presente; ele existe como uma continuação do passado e poderá evidentemente, determinar os acontecimentos futuros. Com a ajuda do eneagrama podemos localizar que lugar do passado e do futuro devemos analisar, interferir ou não, para realizar algo desejado, com eficiência e com o menor dispêndio de energia possível. A energia que sobra, poderá então ser utilizada para os pontos de choque das oitavas paralelas.
Dança Sufi
O eneagrama também é usado associado à técnica dos “Movimentos” (Técnicas do Quarto Caminho). Gurdjieff enfatizava muito essa técnica onde os Movimentos eram feitos em grupo e seguiam o caminho interno, externo ou ambos, dependendo do Movimento. Um exemplo disso é o Eneagrama das Emoções onde a cada ponto se associa um postura física com a geração de uma emoção, sendo que nos pontos de choque as emoções associadas são caracterizadas por uma “estranheza” em termos das emoções do Centro Motor. Geralmente são emoções não-polares e possibilitam a oportunidade do indivíduo desenvolver novas “atitudes emocionais” frente a si mesmo e à realidade. Além da seqüência externa das emoções temos também uma interna, onde observamos como cada emoção influencia e é influenciada pela emoção seguinte.
Além disso, o eneagrama também está associado a cerimônia de “Giros Dervixes” em algumas Ordens Sufis, onde 9 dervixes se situam nos 9 pontos do eneagrama. Os praticantes desse tipo de ritual buscam compreender o eneagrama através da “dança consciente”, pois é durante a prática que surgem a eles os insights básicos que revelam os segredos desse símbolo.
Movimentos de Gurdjieff
Inicialmente, o eneagrama parece ter sido usado apenas em situações de aprendizado, seja pelos indivíduos envolvidos, por grupos ou para analisar a própria estrutura da Escola ou ensinamento. Atualmente, com a crescente divulgação dos trabalhos de Gurdjieff e de seus discípulos, o eneagrama passou a ser aplicado em outras áreas tais como, a psicologia, com a teoria dos “tipos psicológicos” (com Oscar Ichazo, Claudio Naranjo) ou em atividades empresariais (Godo 1995 – 3). Porém ele pode ser aplicado em todos os fenômenos observados pois segue leis que permeiam a vida como um todo. Vários autores se dedicaram intensamente ao estudo desse símbolo e suas aplicações práticas, como por exemplo I.B. Popoff (1978) e J.G.Benett (1983).
Assunto relacionado: A lei universal do 3, 6 e 9