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A psicoterapia corporal reichiana foi desenvolvida por Wilhelm Reich, um médico, cientista e psicanalista austríaco que viveu entre 1897 e 1957. Seu trabalho teórico e clínico é estudado, praticado e ensinado até hoje ao redor do mundo e tem duas bases principais, que chamamos de análise do caráter e vegetoterapia, ou vegetoterapia caractero-analítica. Neste texto vou tentar explicar resumidamente como cada uma dessas técnicas funciona, qual a relação entre elas e o que se pode esperar de um tratamento psicoterápico com essa abordagem.

Wilhelm Reich
Dr. Wilhelm Reich

Caráter, para Reich, possui um significado muito diferente daquele que habitualmente usamos. Não se trata, por exemplo, da índole ou da natureza boa ou má de uma pessoa. Não há nenhuma atribuição moral embutida nesse conceito.

Na semântica reichiana caráter é o conjunto de características que nos identificam. São nossas formas típicas de agir, reagir e pensar; maneirismos, tais como o modo de gesticular e andar, hábitos, postura, jeito de olhar, etc. Costumamos estar muito identificados com nosso caráter e assim é comum afirmarmos que “somos assim mesmo”, ou que essa é a nossa essência. É pelo conjunto de nossa estrutura de caráter, inclusive, que costumamos ser reconhecidos pelas pessoas com quem convivemos.

As atitudes caracteriais são formas que construímos ao longo de nossa história e em relação com o meio em que vivemos. No momento em que elas passam a ser fonte de sofrimento e se tornam prisões que (des)organizam nossas vidas, podemos falar que estamos diante de atitudes caracteriais neuróticas.

neurose

As atitudes neuróticas, em especial, foram adotadas inconscientemente ao longo de nosso desenvolvimento para que pudéssemos sobreviver às dores e traumas por que passamos quando, ainda bebês ou crianças, tínhamos muito poucos recursos e autonomia para nos defender. Assim, podemos entender o caráter neurótico como um aparato defensivo enrijecido que nos protege de “ameaças” internas — desejos, emoções e pensamentos que não queremos enxergar — e externas — situações cotidianas perturbadoras. Essas formas são estereotipadas, repetitivas e — principalmente — inconscientes.

Na vida adulta essas atitudes são maneiras sempre iguais que utilizamos para “resolver” nossos problemas atuais, para estar no mundo e nos relacionar com as pessoas e conosco mesmos. Geralmente elas nos levam a reviver sistematicamente nossos conflitos infantis, nos mantendo estagnados no mesmo lugar. Apesar disso, ainda esperamos obter delas resultados que satisfaçam genuinamente nossas necessidades mais profundas.

As neuroses foram adotadas inconscientemente ao longo de nosso desenvolvimento para que pudéssemos sobreviver às dores e traumas por que passamos.

Tomemos como exemplo uma pessoa que fez pirraça a vida inteira para conseguir o que queria. Apesar de na vida adulta essa atitude resultar em alguma compensação vinda do entorno, provavelmente gerará inúmeras tensões e uma grande sensação de impotência, já que a pessoa vai continuar recebendo quase exclusivamente dos outros aquilo que ela quer e precisa, raramente atingindo de fato alguma gratificação completa com esse resultado. Não importa quanta pirraça ela faça, nunca estará satisfeita.

As atitudes caracteriais neuróticas são, no presente, as grandes responsáveis pelo nosso sofrimento, mas muitas vezes não nos damos conta disso. Ou até nos damos conta, mas não queremos ou não sabemos como romper esse ciclo.

Deste modo, o objetivo da técnica de análise do caráter é que uma pessoa enxergue claramente uma determinada atitude, entendendo que esta é uma defesa. Em um segundo momento, pretendemos que ele possa observar em que circunstâncias, com que frequência e como esse comportamento se manifesta. Por último, é necessário que a pessoa entenda qual é a função atual desse comportamento em sua vida e com que momento de seu passado ele se relaciona. Essa compreensão desnaturaliza os comportamentos e abre espaço para que apareça aquilo que está sendo evitado, que pode ser uma emoção ou um outro comportamento.

A lógica do trabalho se assemelha à organização das defesas caracteriais, as quais, como Reich descobriu, se dispõem em camadas: primeiro as atitudes mais superficiais, que são mais acessíveis à consciência, vão sendo trabalhadas uma a uma. Quando elas “afrouxam” as camadas mais profundas começam a aparecer e vão sendo também trabalhadas, até que possamos chegar ao cerne da estrutura caracterial do paciente, que se relaciona diretamente ao seu principal conflito infantil.

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O nosso corpo revela sobre o nosso caráter.

Por exemplo, o excesso de metodismo e organização de uma pessoa pode ser um comportamento defensivo. Ela faz isso sistematicamente, em qualquer circunstância — na praia, em casa ou no trabalho — e sente muita dificuldade ou mesmo impossibilidade de agir de forma diferente. Ao ser trabalhado terapeuticamente esse comportamento pode revelar uma grande quantidade de angústia e desorganização interna. A pessoa se defende da própria desorganização e da angústia gerada pela desorganização ordenando tudo compulsivamente.

Casos de transtorno obsessivo-compulsivo, por exemplo, são muitas vezes exacerbações de uma atitude caracterial de organização rígida e implacável, a qual se transformou em um sintoma. Entretanto, o caráter neurótico, apesar de patológico, não é comumente identificado como um problema. Já o sintoma sim. Para Reich todo sintoma neurótico tem como base e origem uma atitude caracterial. Como exemplos de sintomas neuróticos podemos considerar o transtorno de ansiedade, a síndrome de pânico, surtos agressivos ou de desespero, depressão, doenças psicossomáticas entre outros.

Uma pessoa que age sistematicamente com agressividade pode vir a descobrir, em terapia, que investigar esse comportamento significa entrar em contato com uma imensa tristeza e sensação de vulnerabilidade. Ela sentiu muita tristeza na infância e lidou com isso se tornando muito agressiva. Mas a tristeza, por nunca ter podido ser vivida, permanece ali escondida atrás da defesa. Enquanto ela não se permitir reconhecer e viver a tristeza, dificilmente será capaz abandonar sua agressividade.

As atitudes de caráter, ao ser tornadas conscientes e analisadas do ponto de vista de sua função (Para que essa atitude serve? Contra o que ela defende?) e de sua origem na história de vida de uma pessoa, afrouxam e cedem espaço para as emoções e conflitos reprimidos — os conflitos essenciais e mais básicos da vida de alguém. E, principalmente, abrem espaço para um funcionamento mais espontâneo, flexível e saudável.

Outro aspecto importante da terapia reichiana é o que chamamos de vegetoterapia, que pode ser definida como uma terapia voltada para restabelecer o funcionamento adequado do sistema nervoso vegetativo, que é responsável por regular o funcionamento dos órgãos (circulação sanguínea, digestão, respiração, temperatura corporal, etc) e pela adaptação de nosso corpo às modificações do ambiente (reações de luta ou fuga diante de ameaças, por exemplo).

Aqui estamos falando da parte mais estritamente corporal da terapia. Apesar disso, como veremos, as atitudes caracteriais se formam em conjunto com padrões vegetativos sendo ambos expressões, em distintos domínios, de uma mesma defesa.

A vegetoterapia consiste em trabalhos que servem para atuar nas defesas corporais, sendo o mais importante deles o trabalho respiratório. Reich descobriu que a principal e mais básica estratégia de defesa emocional que usamos é o bloqueio da respiração: tendemos a respirar de forma curta e parcial, mobilizando somente a barriga ou o tórax, por exemplo. O bloqueio respiratório nos ajuda a rebaixar os níveis de energia e vitalidade de nosso corpo, retirando intensidade de nossas sensações e experiências. Isso evita que sintamos muita dor — é comum prendermos a respiração quando nos assustamos ou machucamos. Mas também evita que vivamos experiências prazerosas com intensidade e abertura.

Desta forma o trabalho respiratório perpassa todo o processo terapêutico, inclusive a análise do caráter, servindo para aumentar a quantidade de energia no corpo e com isso a intensidade das nossas emoções e do nosso contato com elas.

Em linhas gerais, na terapia reichiana entendemos que cada parte do corpo está relacionada a atitudes específicas. Dizemos que estas últimas estão predominantemente — mas não exclusivamente — ancoradas nessas partes. Assim, cada bloqueio — ou desbloqueio — somático (ou seja, corporal) se relaciona diretamente com determinados comportamentos, ou com a dificuldade de manifestar determinados comportamentos.

A agressividade ou o afeto são expressos principalmente pelos braços, que podem trazer alguém para perto em um abraço ou afastar, empurrar e levar algo para longe. Nosso pescoço pode sustentar uma atitude arrogante — o famoso nariz em pé — ou submissa — a cabeça baixa. Com os olhos podemos evitar entrar em contato com a realidade — basta fecharmos os olhos, desviarmos ou mesmo desfocarmos o olhar. Com eles podemos também investigar demasiadamente, observando cada detalhe ou controlando o que se passa ao nosso redor. Nossos ouvidos também podem estar sempre atentos: “será que estão falando mal de mim?”

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Fraderico Navarro

A musculatura de nossas costas pode aguentar demais ou de menos e isso está relacionado com o quanto alguém suporta dores, pressões e incômodos (“pode deixar, eu aguento, eu dou conta”!) ou com o quanto alguém não se sente respaldado — por si mesmo atualmente, mas em algum momento de sua história por seus pais ou cuidadores — a seguir em frente com sua vida, podendo ter a sensação de que vai desmontar diante de quaisquer dificuldades. Lábios retraídos podem falar de dureza afetiva ou da impossibilidade de pedir e receber o que precisamos.

É importante observar que os bloqueios somáticos são manifestações corporais crônicas. Uma prisão de ventre, por exemplo, só pode ser considerada um bloqueio se ela se manifesta sistematicamente na vida de uma pessoa.

Os bloqueios aparecem como falta ou excesso de tônus em determinado músculo ou grupo de músculos, ou como dificuldade de coordenar os movimentos de determinada parte do corpo. Podem se manifestar como excesso de sensibilidade ou como anestesia em alguma parte, ou como problemas crônicos de pele, dificuldade de perder ou ganhar peso, uma expressão facial “congelada” (estar constantemente franzindo a testa, por exemplo) ou dificuldade em sentir totalidade do corpo de maneira integrada, entre outros. Dizemos que contrações e bloqueios corporais são emoções estagnadas.

As emoções são movimentos concretos de bioenergia dentro de nosso organismo. Elas são um conjunto de ações do sistema vegetativo, e também a nossa percepção e reconhecimento dessas ações. Assim, o calor no peito é percebido e reconhecido como amor ou raiva, o frio nas mãos e tremores como medo, um rebaixamento energético como tristeza, etc. Nossas defesas caracteriais e somáticas muitas vezes desfazem a relação espontânea entre sentir, perceber, reconhecer e expressar as emoções. É comum em terapia que uma pessoa esteja manifestando todas as reações vegetativas e expressões de uma emoção sem que o perceba. Ou, ao contrário, ela pode dizer estar sentindo algo naquele momento e não esboçar reação alguma. E, o que é ainda mais comum, uma pessoa pode estar completamente bloqueada afetivamente, ou seja, não sentir e nem expressar suas emoções.

Para seguirem seu curso natural e biológico, as emoções precisam ser sentidas, percebidas, reconhecidas e expressas em sua intensidade original. Para isso é necessário que haja um fluxo relativamente livre e desimpedido de bioenergia pelo corpo. Entretanto, nossas emoções esbarram ou são completamente tragadas por nossos bloqueios caracteriais e somáticos. Esses bloqueios são alimentados por nossa energia viva, são energia estagnada em determinado ponto. Isso gera um amortecimento da experiência de viver e permite que uma série de processos aconteçam conosco sem que percebamos: uma emoção não vai embora simplesmente porque não entramos em contato com ela. O inconsciente na terapia reichiana são as atitudes corporais, os comportamentos e os padrões emocionais que não percebemos.

Todo o trabalho reichiano tem o objetivo de flexibilizar nossos padrões de defesa, uns no nível psíquico e outros no nível corporal e energético. Esses padrões se fortalecem na medida em que são constantemente atualizados e praticados, dia após dia desde a infância. A consciência a respeito dos mesmos e o entendimento de seu significado e função tem o poder de interromper seu funcionamento automático e estereotipado. Isso abre espaço para que venham à tona as camadas ocultas de emoções, pensamentos e memórias.

A partir do contato com as questões que estão escondidas pelas atitudes defensivas é possível reorganizar e ressignificar nossa maneira de estar no mundo e de construir nossas vidas, abrindo espaço para mudanças profundas sustentadas por atitudes mais saudáveis, eficazes e prazerosas.

Principais referências bibliográficas sobre os assuntos abordados no texto:

Elias Minasi